quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Anabela na revista Selecções Reader's Digest


«Todos os dias tem que ser como a estreia.»

Anabela diz que passou de «menina do Festival» a «menina do La Féria».


Esta mulher, que cresceu em cima dos palcos, fala da emancipação em relação à mãe, obsessiva no amor e na admiração. Muito modesta, diz que as pessoas são mais importantes que o sucesso. Anabela Braz Pires tem 30 anos, e aparece numa roupa escura e discreta. Usa o cabelo loiro porque cinco dias por semana é «Maria», a heroína de «Música no Coração» que La Féria encenou no Politeama. Fala muito pausadamente e num tom muito próximo daquele que tem quando está a cantar.
Selecções do Reader`s Digest - Cresceu nos palcos, esteve muito exposta desde cedo. Como é que foi percebendo quem era, o que queria para a sua vida?
Anabela Braz Pires - Comecei a cantar com oito anos, a ir a festivais infantis. Aquilo que sempre achei foi que, perante os outros, tinha responsabilidades. Por exemplo, a representar Portugal lá fora. Fui a uma gala da Unicef, na Holanda, em 1989, apresentada pela Audrey Hepburn. Adorei conhecê-la! Tudo isso conciliado com a escola. Os meus pais nunca tiveram que dizer: «Vai estudar, vai fazer os trabalhos». Sempre fui metódica e organizada.
SRD - Licenciou-se em Psicologia.
ABP - Sim, mas nunca exerci. A música sempre foi o meu trabalho, o meu mundo. Às vezes, quando ia para a faculdade, apesar de gostar muito, sentia-me desenquadrada – eram universos opostos. O da escola era muito exigente, e na música sentia-me como peixe na água. Não sei se poderia ser uma boa psicóloga... Mas sempre senti que cantar era uma das coisa que sabia fazer.
SRD - É a sua forma de expressão...
ABP - Sim, encontrei na música a minha forma de expressar o que sinto, o que sou.
SRD - O que é que representou para si crescer em cima de um palco? Com a noção de que a estima e a admiração provavelmente eram indissociáveis...
ABP - Sempre percebi a diferença [entre a estima e a admiração]. Os meus pais sempre me transmitiram isso. O público dá-nos muita coisa, reconhecimento – nós sentimos quando gostam de nós ou quando não gostam. Mas é muito diferente do amor da família, da amizade dos amigos. Isto são coisas de que preciso muito, e muito mais importantes do que o sucesso.
SRD - Quando é que percebeu isso? Essa segurança na resposta requer maturidade...
ABP - Não sei. Muita gente me fala nisto: desde miúda tenho uma forma de estar modesta. Mesmo aos 16 anos, quando já era conhecida ... Com 16 anos, já tinha uma certa independência, ganhei algum dinheiro. Era uma altura em que a pessoa que ganhava o festival tinha muitos espectáculos. Isso podia ter mexido comigo de outra maneira. Podia ter abandonado os estudos, pensar que estava na maior e que tudo ia ser fantástico. E não. Por isso, desde cedo dissociei a fama, o meu trabalho, a música, daquilo que é o amor verdadeiro. Também fui muito protegida pela minha mãe. Andava sempre comigo para todo o lado.
SRD - Fale-me da sua mãe.
ABP - A minha mãe foi a responsável pelo facto de eu cantar. O meu pai nunca ligou muito, achava que eu devia estudar. Mas com a minha mãe, foi diferente. Como eu cantava muito em casa, os amigos diziam-lhe: «A Anabela canta tão bem, tens de levá-la aos festivais!». E ela começou a ir comigo de norte a sul do país a festivais de miúdos. Ganhou uma admiração excessiva por mim ... Sente-se responsável pelo meu sucesso, por tudo o que tenho feito. É uma mulher com uma energia pouco vulgar: tudo o que quer, consegue. Admiro-a muito. Depois ganhámos algumas coisas que sempre advêm de relações obsessivas. Houve uma fase em que tive de ...
SRD - Dar o Grito do Ipiranga.
ABP - Precisei de distanciamento e de perceber quem era aquela mulher que não era só a minha mãe, e que tinha de perceber que eu também precisava do meu espaço. Foi muito forte.
SRD - Imagino que tenha tido sentimentos de culpa e ingratidão ... Porque a sua mãe dedicava a vida ao seu projecto, a pô-la no palco, a fazê-la brilhar ...
ABP - Exactamente. Percebi que não podia continuar a ter uma mãe como empresária. Desde cedo percebi que a família é a família e o trabalho é o trabalho – não posso confundir. Há relações de trabalho e de amor que por vezes acontecem e que até dão bons resultados... Mas eu achei que não. Acho que a minha mãe transportou muitas coisas dela, desejos dela, que viu realizados em mim – o facto de ser conhecida e de ter algum estatuto, por exemplo: sentiu-se feliz e compensada por eu ter isso.
SRD - Essa relação fê-la interrogar-se sobre o valor que lhe era devido a si e o valor que era devido à sua mãe?
ABP - Talvez. Este é um tema com o qual sofri. Não falo muito disto. Foi uma relação muito intensa e muito boa. Mas para ganhar algumas coisas, tive de ser forte e romper ... Tive de dizer: «Mãe, já posso caminhar sozinha». Não foi fácil fazê-la perceber isto. Tudo com um enorme sofrimento, como é óbvio.
SRD - Foi um corte umbilical.
ABP - Afectivo e profissional.
SRD - Foi estudar Psicologia por querer compreender melhor esta teia de relações?
ABP - São tão complexas... Eu nem sabia bem o que ia estudar, era miúda e admirava muito um amigo do meu irmão que era psicólogo. Depois, na disciplina de Psicologia do 10 e 11º anos, estudava-se «o homem em situação» – nunca hei-de esquecer a expressão. Também a questão das diferentes percepções que as pessoas podem ter perante uma mesma situação – tudo aquilo me despertou interesse. E sempre gostei de ouvir as pessoas. As pessoas facilmente se abrem comigo.
SRD - Quando alguém está sobre um palco, as leituras que os que assistem fazem são, por força, diferentes umas das outras. Quem está em palco está sujeito a um critério de aceitação que não domina completamente.
ABP - Não é fácil. A percepção que tenho da percepção que os outros têm de mim é que eu canto muito bem. É uma coisa em que acredito. É uma coisa em relação à qual não tenho muitas inseguranças.
SRD - As suas inseguranças situam-se onde?
ABP - Hoje em dia, situam-se na representação. Será que estou a ir bem? Será que estou a ser credível? Entrei neste mundo do teatro pela mão do Filipe [La Féria], como cantora, com 17 anos. Ele é que começou a puxar por mim. Nunca estudei teatro, e logo à partida tenho aquela coisa de: «Não sou actriz». Tudo o que sei, aprendi com o Filipe. Tenho limitações, mas aprendo facilmente.
SRD - Ganhou a Grande Noite do Fado, em 1989, com 12 anos. Como é que foi no dia seguinte quando chegou à escola?
ABP - Eu não queria ir, nunca gostei de fado! Namorava com um rapazinho por quem estava apaixonadíssima, e tinha vergonha de lhe dizer que tinha ido cantar o fado! E veio logo na primeira página do Correio da Manhã, no dia a seguir. Eu, miudinha, muito cheia de paranóias... Mas era sempre motivo para uma grande festa na escola. Quando foi do Festival da Canção, houve uma festa grande.
SRD - Tem agora 30 anos, mas as pessoas continuam a vê-la como uma menina. Se calhar, foi porque acompanharam o seu crescimento.
ABP - Talvez. Não houve nenhuma estratégia de marketing. Toda a minha carreira se fez porque as coisas foram aparecendo, e eu fiz opções. Gravei alguns discos, uns seis ou sete e, depois, fui para o teatro. Passei da «menina do Festival» para a «menina do La Féria».
SRD - Nunca lhe apeteceu desistir, fazer outra vida?
ABP - Não. Sempre senti foi necessidade de ter outras coisas, outras vidas em paralelo. Sou dispersa nos interesses. Agora, por exemplo, apetece-me tirar um curso de medicinas alternativas. Também penso em abrir um negócio que não tenha que ver com a música. Nunca tive tempo de concretizar estas ideias, nem a Psicologia, embora queira sempre ter outras coisas a que me agarrar.
SRD - É uma almofada pensar que, se se cansar da música ou se correr mal, pode fazer outra coisa?
ABP - É também pela segurança – que é ilusória ... Às vezes penso: «E se deixar de cantar, ou se deixar de ter sucesso ou trabalho?» Sim, gostava de ter outra ferramenta. Mas, sobretudo, ocupa-me mentalmente. Só quero cantar enquanto me sentir bem a fazê-lo. Já pensei em ter um filho. Mas isso implica parar. E parar mexe comigo. Cria ansiedade.
SRD - Preocupa-a não voltar ou, pelo menos, na mesma forma?
ABP - Como é que vai ser? Estou habituada a estar sempre a fazer coisas, sempre com projectos, graças a Deus. Parar por questões pessoais ... Pus sempre o profissional à frente. Vai ser interessante o momento em que decidir: «Agora é o meu lado pessoal [que tem primazia].»
SRD - O que é que o define? Sempre que procuro o seu lado pessoal, ele aparece diluído no profissional. Como se ofuscasse tudo o mais. Como se ocupasse o espaço todo.
ABP - É verdade. Quem sou eu? Sou uma pessoa que gosta de conhecer. Acho que sou doce. Sou uma pessoa que tem princípios, valores que os meus pais me transmitiram. Dou muita importância aos amigos, à lealdade, àquilo que as pessoas me contam. Seja a mulher da limpeza do teatro, seja alguém importante e que conheço bem. Quando contam o que lhes apetece contar, gosto de guardar. Saber guardar é muito valioso para mim.
SRD - Porquê? Estamos a falar de uma linha essencial da sua vida, que é mostrar, exibir, perante uma plateia ...
ABP - Pois é, talvez por isso o lado mais íntimo e privado seja tão importante. Sinto-me feliz quando alguém me conta algo da sua intimidade. É valioso receber essa dádiva e saber que sei guardar.
SRD - Não consigo perceber a quem se dá intimamente ...
ABP - Por acaso dizem que nunca me dou totalmente. Mesmo aqueles com quem tenho relações mais íntimas. Se calhar não me dou mesmo. Mas não faço isso conscientemente. E não sei a que é que se estão a referir, porque acho que estou a dar ... Eu tenho as minhas histórias,e acho que não as devo partilhar com toda a gente. Há coisas que vivi e que não tenho que expôr. Não tenho que expôr a alguém só porque essa pessoa passou a fazer parte da minha vida. Sou muito selectiva. Pode ser que seja um equilíbrio que procuro manter ... Não sei, nunca pensei nisto.
SRD - Por alturas do Festival da Canção, o que é que imaginava que ia ser a sua vida aos 30 anos? Que ia ser uma pop star internacional? O que é que ambicionava?
ABP - Sabia o que não queria. Não queria enveredar por uma música muito fácil, só para vender. Comecei a ter contactos com outros músicos, como o Rui Veloso, comecei a traçar outros caminhos.
SRD - Dulce Pontes e Teresa Salgueiro são cantoras da mesma geração. Têm uma carreira internacional no circuito world music.E há outras cantoras, no fado, que vingaram também lá fora. Naquele tempo, tudo estava em aberto. Porque é que não investiu nesse caminho?
ABP - Em 1999 tive o convite do Carlos Nuñez, muito conhecido internacionalmente, para gravar um disco. Estive dois anos e meio a fazer tournée com ele pelo Mundo inteiro. Em Espanha, muita gente me conhecia. Podia ter aproveitado essa porta aberta. Mas não o fiz, porque aceitei fazer um musical com o La Féria. Decidi voltar e fiz a opção de fazer teatro. Foi um ponto de viragem.
SRD - Os musicais de La Féria que tem protagonizado, foram a opção dos últimos anos. Qual foi o mais exigente?
ABP - «My Fair Lady». Fiquei tão contente! O Filipe deu-me a cassete do «My Fair Lady» quando eu tinha 20 anos. Parece que foi há imenso tempo ..., mas para mim, foi! Fiz «Jasmim ou o Sonho do Cinema», um musical infantil, o meu primeiro. E ele deu-me: «Ainda não viu isto? Tem que ver!». Foi difícil, cantar e representar era uma grande luta, mas senti uma enorme recompensa, e que aquele era um trabalho do qual podia orgulhar-me.
SRD - Quando está nos musicais, a sua vida fica dominada pelos espectáculos.
ABP - Aquilo é muito absorvente. Nos ensaios, dois, três meses, entra-se para um convento – como ele diz. Vê-se pouco a família, o namorado ... É preciso respirar fundo e aprender a gerir as emoções.
SRD - Tem com o Filipe, um pouco, a relação que tinha com a sua mãe?
ABP - Nunca pensei nisso. Ele é muito exigente. Mas a minha mãe não era disciplinadora. São super-presentes. Essa associação pode fazer sentido ... Temos uma boa relação, temos uma admiração mútua. As minhas opções têm sido ficar naquela casa [Politeama].
SRD - Sentir-se em casa é fundamental?
ABP - É. E eu sinto-me bem naquela casa, gosto muito de trabalhar ali. Todos os dias tem que ser como a estreia – o Filipe incute-nos isso, para estarmos ao mais alto nível todos os dias.
SRD - O que é que pode fazer com que cante menos bem? Se estiver infeliz, a sua prestação é afectada?
ABP - Dizem que sim, e eu acredito. A voz reflecte muito o nosso estado de espírito e as nossas emoções. Ter nervos não ajuda nada ...
SRD - «Música no Coração» é uma recordação da sua infância?
ABP - Claro! Via sempre que passava na televisão. A Julie Andrews é uma referência como cantora. É o musical da minha vida, sempre quis fazê-lo. É eterno, não passa de moda, a pessoa sente-se feliz quando o vê. Gostava de ir a Londres ver a versão que agora estreou do «Música no Coração».
SRD - Quando está em casa, sozinha, entretida, ainda canta, cantarola?
ABP - Não canto praticamente nada em casa. Só se estiver a aprender alguma coisa. No carro é que gosto de cantar!

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